Phydia de Athayde
De janela da alma a termômetro da alienação. Os olhos convidam a uma reflexão: por que a espécie humana está cada vez mais incapaz de enxergar longe? Literalmente. Nos últimos vinte anos, a população mundial de míopes duplicou. No Brasil, estima-se que atinja 30% da população. E o índice tende a aumentar, especialmente entre os mais jovens. Uma pesquisa recente, realizada com 360 crianças entre 9 e 13 anos, mostrou que 21% das que ficavam seis horas por dia em frente ao computador ou ao videogame tinham miopia, o dobro da prevalência nessa faixa etária, segundo o Conselho Brasileiro de Oftalmologia. O pesquisador Leôncio Queiroz Neto também constatou que 30% dessas crianças têm estresse ocular.
Pelo mundo, as taxas mais altas de miopia estão na Ásia. No Japão, chega a 70% e, na China, a 60%. Pesquisadores da Universidade de Camberra, na Austrália, analisaram 40 estudos sobre o tema e encontraram ligações entre escolaridade e miopia. Em Israel, 80% dos jovens das escolas religiosas, onde se dá muita ênfase à leitura, são míopes, ante apenas 30% dos que freqüentam outras escolas. A conclusão do australiano Ian Morgan coincide com a de Queiroz. “Quanto mais tempo dentro de casa, em frente ao computador ou à tevê, maiores as chances de se tornarem míopes.”
A incapacidade de enxergar longe tem mais de uma causa provável. Não há consenso, mas pode a origem ser genética, estar ligada ao crescimento do olho ou a maus hábitos visuais. A esse grupo de hipóteses alguns profissionais acrescentam fatores emocionais, como a depressão, a cobrança e o estresse. Nessa linha atua a terapeuta visual Maria Fernanda Ribeiro, que desenvolve um trabalho ainda pioneiro no Brasil. “Nosso corpo não é programado para enxergar tão de perto. A modernidade está transformando o ser humano em um ser míope”, diz. Ela se refere ao cotidiano em ambientes fechados, típico das cidades. “Enxergamos como glutões que engolem sem mastigar, enquanto o que precisamos é de horizonte, de tempo para olhar para o distante. Enxergar longe relaxa os olhos”, ensina. Não é difícil encontrar algum sentido nisso ao recordar a sensação de apreciar um pôr do sol, o formato das nuvens ou o ponto em que o mar toca o céu.
O consultório de Fernanda vive cheio. Além do atendimento particular, ela e outros quatro terapeutas ministram cursos livres do Método Meir Schneider, conhecido como self-healing (autocura), no Brasil. Embora não fique totalmente à vontade com o termo “autocura”, ela explica que o objetivo é acessar a inteligência inata do corpo para a reabilitação. “Sirvo de guia para a pessoa encontrar o próprio caminho.” A terapia visual não implica o uso de lentes e a recomendação destas, por sinal, é feita por um optometrista. Ainda que reconhecidos pela Organização Mundial da Saúde, no Brasil os optometristas disputam no STF o direito de receitar óculos. “Muitos oftalmologistas exercem o nosso ofício, enquanto faltam cirurgiões nos hospitais”, critica Eduardo de Moura, do Conselho Brasileiro de Óptica e Optometria.
Além de trabalhar em parceria com um optometrista, Fernanda contraria o senso comum ao considerar que a miopia é resultado tanto de uma predisposição genética como da associação do estresse muscular ao tédio provocado pela leitura. “O olho é como um músculo e sofre espasmos de acomodação. Por não relaxar nunca, ele desaprende a olhar longe. Essa é a pseudomiopia, muito comum em vestibulandos. Um olho nesse estado precisa de relaxamento, e não de óculos”, defende. Num caso assim, Fernanda ensina exercícios para o olho relaxar, entre eles o sunning (de olhos -fechados, movimentar a cabeça ao sol), o palming (repousar as mãos, aquecidas, sobre os olhos), o shifting (pesquisar detalhes no horizonte por sete minutos seguidos) e o piscamento.
Exercícios em vez de óculos? Médicos discordam. No entender do oftalmologista Fábio Adams, preceptor de cirurgias de catarata na Santa Casa, em São Paulo, um paciente que sofra esse efeito de miopização, ou seja, “que não é míope, mas está míope”, deve usar óculos nos momentos em que a vista embaça. “Mais da metade da população trabalha exigindo a visão de perto, a contração do músculo ciliar. Com o tempo, esse músculo fica menos eficiente e provoca a visão sem foco no fim do dia. Os óculos são usados para não forçar os olhos”, diz.
Parênteses. O brasileiro passa em média 45 horas por mês conectado à internet, de acordo com o Ibope Nielsen. Entre dez nacionalidades pesquisadas, o brasileiro passa o maior tempo diante da tela, num total de 69 horas e 55 minutos por mês. Em segundo lugar vêm os japoneses, depois norte-americanos, franceses e britânicos.
Formado em medicina e oftalmologia, Adams nunca ouviu falar na técnica de reabilitação visual com a qual Fernanda trabalha. “Tendo a não acreditar que funcione para todos, porque a medicina não pode se basear em experiências individuais”, diz, embora ressalve que “a oftalmologia tem muitos limites”. Ele vê, no entanto, um paralelo com o tratamento do estrabismo em crianças. “Nosso procedimento é ocluir o olho bom para estimular o outro a trabalhar mais”, diz. E acrescenta que os oftalmologistas especializados em visão subnormal (perto da cegueira) trabalham com exercícios e recursos ópticos para que o paciente use a pouca visão disponível para ganhar independência.
Quando está diante de casos graves ou pós-cirúrgicos, Fernanda trabalha para treinar o cérebro, acostumado a otimizar problemas, a levar em conta também os dados fornecidos pelo olho “fraco” na formação da imagem. A maior parte dos pacientes que a procuram sofre de degeneração macular, uma doença incurável, associada ao envelhecimento, que resulta na perda da visão central (resta apenas a periférica). “Ajudo-os a usar melhor a -visão que sobrou ao ensinar o cérebro a enxergar através da mancha na retina”, diz. Ela menciona casos em que o paciente, após uma única sessão de exercícios, consegue melhorar duas linhas na tabela Snellen (aquele painel com letras gradativamente menores para testes visuais). Mas não garante sucesso sempre, “até porque vejo o tempo inteiro o conteúdo emocional, a depressão, o desalento, interferirem”. Na maior parte dos casos, diz a terapeuta, a degeneração ou melhora ou estabiliza. E tudo a um preço conhecido: “Os exercícios são para sempre. Devem ser tão cotidianos quanto escovar os dentes”.
O pesquisador da USP e especialista em doenças da retina Francisco Max Damico não vê “nenhum mal” em exercícios visuais. Mas desconfia da melhora nos pacientes com degeneração de mácula. “Se é degeneração seca, não há baixa visual, então o benefício é o mesmo que qualquer um conseguiria. Na degeneração com vasos, duvido do que ela diz”, expõe o oftalmologista do Hospital Sírio-Libanês. E pondera: “De modo geral, ao que parece, exercícios visuais podem ajudar um grande número de pessoas. Mas, se parar com eles, a doença progride como se nada tivesse acontecido. Resta saber se vale a pena”.
A ressalva dos médicos ao método de reabilitação usado por Fernanda, no entender do oftalmologista e professor da USP Mario Luiz de Camargo tem razão de ser. “A controvérsia existe porque o oftalmologista leva em conta apenas a integridade anatômica e funcional dos olhos, não costuma considerar que a visão ocorre na mente, e as vias ópticas apenas enviam as mensagens ao cérebro. Esses exercícios atuam em outro nível. Não modificam a doença ocular, mas, sim, a atividade cerebral.”
Camargo divide a visão em três tipos: ocular (originada nos olhos), cerebral (produzida pela atividade do sistema nervoso) e contemplativa (associada à consciência). Os resultados dessa e de outras terapias holísticas da visão não aparecem em pesquisas acadêmicas tradicionais por produzirem resultados difíceis de mensurar, acredita o médico. “Elas provocam mudanças em parâmetros subjetivos, tais como percepção espacial, tridimensional, de campo visual e outros”, diz, e menciona a única evidência científica da ação dessas terapias, encontrada em pacientes com degeneração macular. Após os exercícios, a tomografia e a ressonância magnética apontaram mudanças nos padrões neurais cerebrais e o aumento na atividade do córtex visual. O estudo, de Eric Schumacher, da Universidade da Geórgia (EUA), saiu na edição de dezembro de 2008 da revista Restorative Neurology and Neuroscience.
O psicanalista e professor do Instituto Sedes Sapientiae Rubens Volich não tem dúvidas de que as emoções interferem na saúde e na capacidade visual. “A psiconeuroimunologia é um campo totalmente científico. E diversas pesquisas mostram essa relação. O erro de quem não as leva em conta está em trabalhar apenas com o que é material.” Volich acredita que a ansiedade em tudo ver, tudo ler, tudo captar, provoca não apenas mais miopia no ser humano. “Tudo isso tem a ver com uma certa alienação da cultura moderna. As pessoas não têm mais contato com as próprias experiências. São capturadas pelo que está fora, pelo consumo, pela propaganda, e se esquecem do que é essencial. Aparentemente, ninguém sente falta de um horizonte, mas todos sentem a diferença quando o experimentam.”
A filósofa Olgária Matos vai além: “Ninguém tem paciência para se encontrar consigo mesmo ou com um Outro. Olhar longe significa pensar grande, não ficar imerso no status quo, na repetição do óbvio. É amar também o distante e ser capaz de encontrar boas razões para viver e tentar viver bem, considerando-se, à maneira grega, o que está em nosso poder e o que nos escapa”.